Surma: Duas Viagens, Dois Mundos — Do Primavera Sound Porto ao Coração do Bota
Nos últimos tempos, assistimos a dois concertos de Surma tão distintas e tão maravilhosas, que não pudemos deixar de escrever sobre ambas. Estas duas experiências embora partilhassem a mesma essência sonora, foram universos distintos, separados por espaços, atmosferas e intimidades que delinearam dois retratos únicos da mesma artista em movimento.
No Primavera Sound Porto, Surma subiu a um palco imenso, rodeada pelo vasto céu aberto e pelo mar de pessoas que um festival deste calibre atrai. Ali, a sua eletrónica envolvente encontrou a grandiosidade do ar livre, espalhando-se como um feitiço expansivo que dominou o espaço e fez vibrar uma multidão sedenta de inovação. O concerto foi uma obra de artesanato sonoro, onde as camadas ricas, as batidas dançáveis e as atmosferas etéreas combinaram-se num espetáculo de luz e som que hipnotizou a audiência. A sua presença, ali, foi sólida e cativante, preenchendo cada recanto do espaço com uma energia que se expandia, ecoando para além do visível.
Mas o que se passou no Bota, em Lisboa, não foi um simples eco desse momento: foi uma reinvenção, uma outra forma de sentir e de ser sentida. O Bota, com as suas paredes mais próximas, o palco no centro da sala, e o público rodeando cada nota, ofereceu um encontro muito mais direto, quase tribal. A intimidade do espaço anulou distâncias e elevou a música a algo de quase ritualístico. Aqui, Surma invocou uma experiência onde cada textura, cada pausa, cada sopro electrónico parecia estar destinado a um contacto mais profundo e imediato com quem ali estava.
Este concerto, em trio com Pedro Melo Alves e João Hasselberg, desenrolou-se como um vórtice de energia vibrante. Desde o primeiro instante, o som que emergiu não se limitava a ser ouvido; era sentido com o corpo inteiro. A eletrónica densa, pulsante e por vezes hipnótica construía uma tapeçaria sonora onde os ritmos se entrelaçavam como correntes subterrâneas. As batidas, ora dançáveis, ora meditativas, desenhavam um percurso que levava o público desde picos explosivos até a vales de introspecção, onde as baladas etéreas e os momentos mais downtempo criavam espaços de beleza melancólica e silenciosa.Pedro Melo Alves e João Hasselberg não foram meros convidados, foram elementos essenciais desse triângulo vivo, energia que pulsava e se renovava. A posição cénica, com o palco colocado no centro e os músicos frente a frente, transformou o espaço num campo de força onde a comunicação visual e sonora se entrelaçava numa dança subtil, criando uma corrente elétrica que se espalhava para a audiência, num diálogo permanente e intenso.
Se no Primavera Sound a luz desenhava vastos panoramas coloridos, no Bota as luzes foram feridas abertas no escuro, com projeções líquidas que ondulavam em perfeita simbiose com a música, envolvendo a sala num abraço simultaneamente íntimo e expansivo. A experiência visual ali foi tão visceral quanto o som, contribuindo para que a audiência não se sentisse espectadora, mas parte integrante de um organismo vivo.
Aquele não foi de forma alguma um concerto comum. Não foi um espetáculo passivo, nem um concerto para assistir à distância ou distante. Foi uma metamorfose coletiva, uma rave íntima, uma viagem onde o som, a luz e o corpo se fundiram num só pulso. O Bota transformou-se num espaço de pertença, onde cada presença, cada respiração, era parte do próprio ritual.
No fim, quando as luzes se apagaram, ficou uma vibração, um eco profundo que continuou a reverberar no interior de cada pessoa ali presente.
Surma mostrou-nos, em dois momentos e dois espaços tão distintos, a vastidão da sua arte e a sua capacidade única de reinventar-se e reinventar o modo como nos conectamos com o som. Se o Primavera Sound foi uma celebração da sua dimensão expansiva, o Bota foi o seu santuário íntimo, uma verdadeira imersão na sua música e no que ela transmite.
✍🏻 Sofia
📷 Primavera Sound Porto: Hugo Lima
📷 Bota: António Colombini