Jim Jarmusch & Jozef van Wissem na Casa da Música: Elegia Eléctrica para um Mundo em Ruínas
Porto, 13 de Julho. A noite caiu cedo na Casa da Música, como se pressentisse o que ali se iria conjurar. O que aconteceu não foi bem um concerto, nem tampouco um espectáculo. Foi como que uma evocação, uma liturgia profana onde o som substituiu a palavra e a sombra disse mais do que qualquer luz.
Jim Jarmusch e Jozef van Wissem não subiram ao palco; surgiram, como se sempre tivessem estado ali. Sentados entre cabos, amplificadores e silêncios, pareciam monges de um culto perdido, preparando a iniciação do público a uma outra escuta. Van Wissem, de alaúde barroco em punho, tocava como quem reza, mas com dedos que conhecem a carne do tempo. As suas melodias eram círculos — nunca linhas — e cada repetição abria um novo espaço, como se a música não avançasse, mas escavasse.
Jarmusch, esse xamã discreto do cinema, operava do outro lado do espelho. À sua guitarra, não pediu virtuosismo, mas matéria: granulação, ruído, eco. As suas intervenções corroíam na perfeição. E nessa erosão do som construía-se algo inesperadamente belo, como ruínas ao pôr do sol ou uma ferrugem que brilha.
A Casa da Música, essa catedral de concreto e reentrâncias, serviu de caixa de ressonância ideal para esta missa desconstruída. A luz rarefeita, o fumo lento, o silêncio entre os temas, tudo conspirava para um estado de atenção alterada. O tempo, por momentos, parecia dobrar-se, ou então dissolver-se completamente.
Num dos momentos mais intensos, ambos se levantaram, não como rockstars, mas como duelistas contemplativos. Olharam-se em silêncio, cruzaram as guitarras e deixaram as notas dispararem. Não eram riffs, eram sinais. Não eram canções, eram fragmentos de um idioma que talvez tenhamos esquecido. E no meio dessa troca tão tensa, bela e sem redenção percebia-se que a música aqui não buscava consolo, mas confronto.
O encore trouxe um sismo inesperado: uma drum machine surgiu como um coração mecânico a palpitar no escuro. Uma batida seca, industrial, que não quebrava o transe, aprofundava-o. Foi como acordar num sonho dentro do sonho, ou cair para cima.
No fim, houve um silêncio demorado, denso, como se o feitiço ainda pairasse sobre a sala. Porque este não foi um concerto que se consome: foi uma experiência que permanece, uma ferida suave que se leva para casa.
Jarmusch e Van Wissem não tocaram para nós. Invocaram-nos. E por uma hora ou mais, fomos chamados para dentro de um espaço onde o som tem memória, e onde a beleza se encontra exactamente onde começa a ruína.
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Fotografias e texto de António Colombini
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