Boogarins psicadelismo em estado vivo, entre o feitiço e o rigor
Na noite húmida de 30 de abril, o Musicbox — esse subterrâneo de pedra e luz pulsante no Cais do Sodré — esgotou até ao último centímetro cúbico de ar. A sala cheia não era apenas sinal de expectativa: era um presságio. Os Boogarins, de regresso a Lisboa com o novo disco Bacuri na bagagem, não vinham para revisitar êxitos nem apenas para apresentar um novo trabalho. Vinham para criar um espaço sonoro e emocional, suspenso no tempo, onde o psicadelismo se faz com cérebro, corpo e alma.
Entre a leveza do delírio e o peso da intenção
Logo nos primeiros acordes de “Bacuri”, percebeu-se que não era um concerto qualquer. Os Boogarins não tocam, eles habitam no som. A guitarra de Benke Ferraz, saturada de efeitos analógicos que mais expandem do que distorcem, desenhava linhas de fuga pela sala, enquanto Dinho Almeida, num registo vocal entre o sussurro e o lamento cósmico, guiava a travessia.
Canções como “Corpo Asa” ou “Te quero na memória” revelaram uma banda madura, que sabe quando insistir num groove hipnótico e quando desmontá-lo com elegância. A secção rítmica, de precisão matemática e instinto tribal, foi o eixo onde tudo girava: firme, mas nunca estática.
Boogarins usam a música como arquitectura sensorial, cada som parecia desenhado à mão, a atenção ao detalhe foi notável. Os Boogarins tratam o palco como um estúdio vivo, tudo tem dimensão, profundidade, intenção. Os sintetizadores criaram atmosferas subtis, quase táctteis, enquanto a guitarra servia tanto de bisturi como de pincel, ora rasgando, ora embebendo a sala numa névoa de feedbacks melódicos.
A voz de Dinho, muitas vezes envolta em efeitos granulosos, funcionava como um instrumento entre os outros — não liderava, mas flutuava, ampliando a sensação de se estar num delírio sonoro onde a canção é uma paisagem mutável.
O psicadelico como linguagem viva
A multidão, comprimida e cúmplice, não estava apenas a assistir: estava a participar. De olhos fechados, corpos em oscilação, mãos erguidas ao acaso — o público entregou-se por completo. E a banda correspondeu com um set que se recusou a seguir fórmulas, preferindo a fluidez de quem sabe escutar-se ao vivo.
Na reta final, “6000 Dias (Ou o Mantra dos 20 Anos)” selou o transe. Cantada em uníssono, serviu de epílogo e libertação. Mas mesmo com a última nota a dissolver-se no teto abobadado da sala, ninguém parecia pronto para regressar à superfície.
Há concertos que entretecem memórias. Este moldou presenças. Os Boogarins mostraram por que razão continuam a ser uma das propostas mais consistentes e visionárias da música psicadélica contemporânea.
No Musicbox, perante uma sala esgotada, não tocaram apenas música, construíram um espaço onde escutar era também sentir, onde o som era o veículo e o destino. Num tempo de sons descartáveis, os Boogarins provaram que a verdadeira viagem ainda se faz ao vivo, olhos fechados, coração aberto.
Data: 30 de Abril de 2025
Local: Musicbox Lisboa (Esgotado)
Texto: Sofia Reis
Fotografia: Sofia Reis
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