MEO Kalorama 2025 — Dia 1: Lisboa em lume e em lume de gente
O sol desceu sobre o Parque da Bela Vista como um manto de fogo. Um calor seco, cortante, que colava a roupa à pele e derretia sombras antes mesmo de se formarem. Começámos o final da tarde com as máquinas nas mãos e os pés já enterrados num pó dourado e quente, olhos semicerrados, suor a escorrer pelas têmporas, e a sensação exata de estar num verão sem concessões. Mas ali, entre o desconforto térmico e a antecipação elétrica, já se intuía que o dia ia ser memorável.
O Palco MEO abriu com o requinte de Father John Misty. Josh Tillman subiu ao palco com a pose de um profeta cansado, desfiando canções como se estivesse a declamar segredos com ironia, cinismo e doçura. O seu folk orquestral é feito de camadas, instrumentos que choram por trás de letras cortantes, arranjos que abraçam e depois se afastam, como quem sabe que tudo passa. “Pure Comedy” ecoou como uma fábula moderna, e ali, sob um céu que começava a arrefecer, sentimos a música como um espelho deformado — belo, desconfortável, verdadeiro.
Os Pet Shop Boys trouxeram ordem e luz ao caos emocional. O duo britânico entrou em cena com uma precisão quase cirúrgica — visuais geométricos, néon e vocais suaves que falam de amor, isolamento e desejo com a simplicidade de quem já viu tudo. “It’s a Sin” transformou o parque num coro exaltado, e “Always on My Mind” teve algo de cerimonial. Era como estar dentro de um videoclip eterno dos anos 80, mas com os pés cravados no presente — dançante, luminoso, vulnerável.
Mas foi com os Flaming Lips que o mundo se virou do avesso. Quando Wayne Coyne apareceu dentro da sua bolha gigante, como uma criatura saída de um conto psicadélico, o tempo pareceu suspender-se. “Yoshimi Battles the Pink Robots” não foi apenas tocado — foi vivido, partilhado, encenado com robôs insufláveis, balões fluorescentes, confetis como neve multicolorida e um delírio coletivo que misturava infância, euforia e melancolia. Não era um concerto. Era um sonho lúcido com banda sonora.
No Palco San Miguel, o início foi mais contido, mas não menos sentido. Cara de Espelho trouxe um lusofonia emocional, com canções que pareciam cartas abertas, sempre sinceras, bem escritas, feitas de pequenos silêncios e melodias generosas. Foi um momento de respiração entre os excessos visuais dos palcos maiores, como uma conversa sussurrada ao ouvido em plena multidão.
Mais tarde, Sevdaliza ergueu uma catedral de sombras. O palco tornou-se um templo, e ela, sacerdotisa, sempre a dançar e cantar como se cada palavra fosse arrancada de dentro. O seu universo sonoro é noturno, denso, feito de batidas que ecoam como passos num corredor vazio. “Human” e “Alibi” não foram músicas, foram rituais. Hipnóticos. Impossíveis de esquecer. Tal como o momento em que o filho apareceu na lateral, criando uma onda de carinho.
E L’Impératrice subiu ao palco com a elegância de quem sabe exactamente como fazer um parque inteiro dançar sem parecer que se esforça. Mas havia algo diferente: era a primeira vez que víamos a banda ao vivo com a nova vocalista, e foi um sopro fresco num projeto já naturalmente sedutor. Ela trouxe charme, atitude e uma voz segura que se encaixou como se sempre tivesse estado ali. Entre grooves solares e sintetizadores aveludados, faixas como “Peur des filles” e “Anomalie bleue” brilharam com nova cor. Dançámos com leveza, mesmo quando o corpo já pedia descanso.
No Palco Panorama Lisboa, os 2manydjs foram os alquimistas da noite. Misturaram géneros como quem baralha cartas de um baralho infinito: disco, techno, rock, pop. Tudo fazia sentido, tudo batia no peito. A pista improvisada tornou-se um redemoinho de corpos, e a noite — finalmente — descolou da terra.
No fim, havia cansaço. Mas também uma espécie de paz feliz, suada, feita de música que nos atravessou o corpo. O primeiro dia do MEO Kalorama 2025 foi uma celebração total: da luz e da sombra, do grito e do silêncio, do passado reinventado e do futuro que se dança agora. Lisboa esteve quente, absurdamente quente. Mas a música soube ser ainda mais incandescente.
E isto foi só o início, ainda temos mais dois dias pela frente e que sensação tão boa.
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