Festival Sol da Caparica– Último Dia: Fé, Frenesim e Reflexão

By VoxPop - agosto 24, 2024

 Houvesse algo mais potente do que a música, e ter-se-ia encontrado naquele entardecer, pouco antes do concerto de MC IG, quando o festival pareceu suspender-se no tempo — e não por razões norma­is. A euforia adolescente deu lugar a um desfile de desmaios, choros, corpos jovens a ceder ao calor, à exaustão e a horas encostados às grades. Nesse instante percebemos que o último dia do Sol da Caparica 2024 ia para além da festa. Era um espelho do que acontece quando a devoção ultrapassa o físico — seja pela música, pelo ídolo ou por uma imagem. Tornou-se um teste de resistência.

A missa que começou com batida

    O dia abriu com um dos momentos mais inusitados do festival: Padre Guilherme, de batina e auriculares, estreou-se no Palco Sagres com um set litúrgico-eletrónico. Remisturas de cânticos religiosos, sintetizadores épicos e frases do Papa em eco cósmico fizeram o público dançar — ou hesitar entre a perplexidade e a rendição. E funcionou. Num mundo onde tudo se funde, até a fé pode ter drop, e o divino pode entrar no ritmo.

Kizomba para o corpo e para a alma

    Seguiu-se Badoxa, que trouxe calor em forma de kizomba-pop. Com ritmo contagiante e temas como “Minha Mulher” e “Control”, transformou o palco num encontro íntimo e dançável. Não precisou de cenários — bastou presença, groove e autenticidade. Adoramos a sua boa disposição e energia.

Pop em crescendo

    Diogo Piçarra retomou a serenidade e a estrutura, com concerto tecnicamente irrepreensível e bailarinos coreografados. Temas como “Trevo” e “Paraíso” foram cantados em conjunto, e a entrada surpresa de Bispo agitou ainda mais a atmosfera. No entanto, a alteração repentina do palco complicou o acesso da imprensa e dos fotógrafos, bem como nos dificultou o trabalho, teríamos que ter material que não tínhamos ali, por não esperar aquela mudança. Além de turvar a visão da plateia da frente — uma decisão mais ligada ao ego do que à necessidade, lamentável e não vemos justificação para tal, claro que por parte do artista, o festival só seguiu as suas exigências, imaginamos que se ele tivesse um sucesso como por exemplo, Coldplay, teriam que retirar o sol do centro do universo, para o colocar a ele. 

Caos, colapso e um silêncio estranho

    Veio então o momento mais tenso da noite. Antes de MC IG subir, o ambiente mudou abruptamente: um, dois, dez corpos caídos nas grades. Os seguranças começaram a entrar em ação para retirar corpos jovens em braços, mães, raparigas, todas em choque. Enquanto aguardávamos o acesso à zona de imprensa, soubemos que, na noite anterior, cerca de 80 jovens tinham sido assistidas em situações semelhantes. Não era apenas calor — era a junção de horas na primeira fila, sem comer ou beber, e uma ansiedade quase mítica por ver o ídolo. Em muitos casos, MC IG não é só um artista — é um símbolo, um crush, uma obsessão. O resultado? Uma histeria física. Algo raríssimo, mesmo para quem vai a festivais e concertos há 30 anos. A excitação é expectável e é boa. O colapso coletivo não devia ser.

O fecho com T‑Rex

    Para encerrar o Palco Sagres, T‑Rex passou do frenesi ao emocional com um concerto profundamente íntimo. Entre hip‑hop, R&B e soul futurista, apresentou temas como “UUUUHH”, “Tempo” e “Tinoni”. Houve mosh, mas também momentos de contemplação — uma catarse coletiva sem grandes fogos de artifício, mas com pura densidade emocional.

Pomar alternativo

    No Palco Bandida do Pomar, o ambiente era mais contido, porém intenso. Linda Martini deram um concerto sólido, cheio de distorção e camadas, embora o público fosse escasso — curiosamente, não vimos a multidão que enche Cassinos e Coliseus, mas o esforço e a qualidade estiveram lá. Os HMB fecharam com elegância e soul refinado, num mix de groove e suavidade merecida.

Uma festa que exige reflexão não do festival mas de uma forma geral

    O último dia do Sol da Caparica 2024 foi uma montanha‑russa emocional: da fé ao fervor, da pop ao colapso adolescente. Deixou-nos concertos memoráveis, sim — mas também imagens que penetraram fundo: jovens a cair antes de o som começar. É tempo de pensar: o que se passa com esta geração? Que papel nos cabe — a organizações, artistas, imprensa — na sua segurança emocional e física? Ainda que sabendo que isto apenas acontece com determinados estilos e target que infelizmente é cada vez maior. Algo bom para as promotoras mas que se torna imprevisivel em termos práticos de gestão e segurança dos eventos.

    Vê‑se, cada vez mais, concertos invadidos por fenómenos efémeros de três, seis ou nove segundos de viralidade. Grupos de rapazes todos iguais, raparigas idênticas, corpos apertando quem só quer respirar o som. Se ficasse por aqui, seria um retrato do nosso tempo. Mas a nossa longa história de concertos — mais de três décadas — leva-nos a questionar: se a música boa, aquela que se faz e se toca de verdade, não for viral, será que estes miúdos sequer a descobrirão?

    A música continua a mover multidões, mas há dias em que essa força se torna quase ameaçadora. E neste domingo quente junto ao mar, a linha entre êxtase e colapso foi, de facto, ultrapassada, porém nada fora do controle e mais uma vez salientamos que a organização geriu estas situações extremamente bem e de forma totalmente adequada e rápida, parabéns a todos os que tiveram que lidar com isto.

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